Lembro

Me pegaram pelo braço e me arrastaram para fora. É do que me lembro. Mas o que mais me irritou naquilo tudo foram os olhares. Olhares gulosos. De pessoas gulosas, que sentiram-se saciadas com aquele pequeno gole de realidade que as estenderam na frente da boate. Um homem e seus trapos, marca-diabo, atirado pra fora; um olho roxo; sangue na flanela. Grande coisa, afinal. Safados. Lembro também que levantei, trôpego, sorri para uma garota qualquer, dessas que usam sapatos caros e vestidos curtos (e caros também), ela fez aquela cara de "ui, ele está com os dentes vermelhos!" Juntei uma boa bola de sangue com a língua, e fiquei , entre o cuspir e o engolir, por alguns segundos; o gosto de sangue é bom, não se pode negar uma coisa dessas. Engoli, afinal o sangue era meu, o estômago daria algum jeito; gosto do estômago por causa disso, ele sempre sabe o que fazer, entende? Você joga de tudo um pouco pra dentro, e ele dá fim naquilo, de um jeito ou de outro. Fantástico! Andei. Ainda estava um pouco transtornado; não com a briga; a briga não é o ponto. Mas aqueles cretinos; achando que uma surra é algo digno de saciar sua sede por algo de vivo, cru. Sangue. Vocês são todos assim. Ordinários. Passam o dia esperando uma desgraça. Se escutam uma frenada e o som do ferro retorcendo em seguida, saem de chinelo de dedo pra fora de suas casas alugadas, ou colocam suas cabeças lindas e descabeladas pra fora da janela, desejando mórbidamente ver uma perna rolando, ou algo que o valha. "A desgraça de alguém é prato cheio pra outrem"; lembro, também, de ter escrito isso num guardanapo antes de apanhar.