Joga, marinheiro
Joga a âncora no coração daquela moça
Toma cuidado que teu barco é de louça
E nesse mar as ondas vem com força
Para, e admira esse cais

Joga, marinheiro
Joga, pro céu passar mais lento
Joga, que em frente tem um mar de lamento
Não deixa a moça ir embora com o vento
Para, e faz casa nesse cais

Joga, marinheiro
Joga a âncora no coração daquela moça
Joga depressa, antes que algum pirata ouça
Toma cuidado que é coração de louça
Para, e fica até sumir mais esse cais
     Sentado aqui, onde devia trabalhar, pensoescrevo, assim mesmo, tudo junto, ao mesmo tempo. Não consigo mais separar um do outro. Entre o cérebro e as teclas, entre o lápis e o papel, passa minha vida, meu bem e meu mal. Feitos de energias, que não são mais do que sensações e intuições, certezas provisórias e uma pitada de fé sem sentido, são meus pensamentos, e neles me encontro como jamais alguém poderá me encontrar entre as esquinas e os semáfaros dessa cidade entediante. Me encontro nú, mais que isso, me encontro transparente, e consigo ver e ler meus sentimentos assim como pode-se ler esse momento iluminado de sinceridade que escrevo.
     Em mim há uma pequena ilha de esperança cercada por um mar calmo da mais medonha e, estranhamente, pacífica solidão. Uma esperança incosciente e irracional de que algum dia, alguma coisa irá acontecer nas nossas vidas. E essa quase-certeza, de que tal esperança é tão falsa quanto notas de trinta ou contos de fada, me perturba, e não consigo fugir disso.
     Mas o fato é que estou vivo, e que das várias alternativas suicídas que você encotra em qualquer farmácia, nenhuma aguçou minha coragem. Então me encontro aqui, nesse penhasco louco da vida, tentando atravessar sob esse fio de esperança que nos sustenta, da vida para a morte, equilibrando numa mão a genialidade e na outra a estupidez. Seres humanos, é só o que somos. Entre famintos e empanturrados, calçados e descalços, seres humanos.
A minha língua é afiada.
Brinca de desmentir verdades,
e de desmedir medidas.
E minhas palavras mentem.
Mas quando escritas com beleza,
e guarnecidas dos trâmites da gramática portuguesa,
são capazes de convencer, friamente,
um gordo de sua magreza.
Ontem mesmo me chamaram de indeciso. Grande mentira. Afinal, nunca me senti tão decidido em toda a minha vida. Decidido à não decidir mais coisa alguma quanto à nada. O que é uma decisão um tanto quanto medrosa; Ou corajosa; Depende exclusivamente da imagem que a pessoa quiser construir de mim em algum lugar do seu cérebro. O que é, para mim, irrelevante. Levo a vida com uma certa crença determinista; Acho que as coisas simplesmente acontecem, não há muito o que você possa fazer pra que aconteçam ou deixem de acontecer, no final das contas. Aí passo por indeciso, preguiçoso, marginal, louco; O que é, de fato, compreensível que se pense. Quanto as decisões, a última que tomei foi a de sentar numa cadeira velha, de madrugada, na sacada do apartamento de alguém, acender um cigarro e vê-lo queimar junto com as estrelas.
Acorda. Já é hora. Já é passada a hora, aliás!
Deixa o sonho debaixo do travesseiro pra mais tarde.
Arruma a cama! Porque? Não sei, arruma a cama.
Vai lavar o rosto, escova os dentes. Vamos, acorda!
Seca! Cospe! Olha a hora!
Joga água no cabelo e passa o pente.
Pra que lado? Pra esquerda, ou pra direta?
Passa logo o pente!
Fecha a camisa.
Põe por dentro da calça.
Passa o cinto.
Meia! Não, meia branca não! Meia preta.
Bate o sapato, pra ver se tem aranha.
Põe o sapato. E a gravata? Que cor?
Alguma cor... séria. Cara de sério, por favor!
Tô com fome. Come depois!
Tô com sede. Bebe depois!
Depois, depois, depois...
Uma hora vai dar tempo.
Aperta a gravata. (Me enforca, eu suplico!)
Tá bom assim? Tá bom, tá bom!
Olha a hora José! Já falei!
Tô indo.
Vai! (Vai trabalhar, que sonhar não paga as contas...)
As coisas são assim mesmo;
Elas te seduzem, te escravizam,
e aí te matam, de um jeito ou de outro.
Não há exatamente uma forma de fugir disso.
Você se dedica pra tê-las,
aí pra mantê-las,
então você morre; E elas ficam.
Até que alguém as compre, de novo, numa loja de usados.
Tatiana podia ter mudado, e parado com aquela idéia de andar pela cidade preocupada apenas em andar e andar, pra lá e pra cá com as mãos nos bolsos, como fazia. Eu me preocupava, ora. Afinal, ninguém pode, simplesmente, sair por aí andando sem rumo pela vida toda. Poxa! Eu acordo todo bendito dia às sete horas da manhã e trabalho o dia todo. Sim, porque tenho a prestação do carro, do celular e do óculos que comprei mês passado pra pagar. À noite tenho que ir pra droga da faculdade. É, não quero ganhar essa merréca a vida toda, até porquê já tô querendo trocar de carro, de novo.  Mal como, mal tenho tempo pra um banho decente, e dormir então! Não dá tempo de ter um sonho sequer. Uma vez a Tatiana me disse que os sonhos duram, em média, oito segundos e tudo mais, o que quer dizer que eu durmo menos de oito segundos por noite, porque eu não sonho, nunca! Juro. Mas enfim, essa é minha vida. E ela tem sido assim a um bom tempo, e vai ser assim por mais uns dois anos no mínimo, o que, de certa forma, me deprime, mas é claro que quando eu me formar tudo vai se ajeitar... Eu fico, realmente aborrecido com a Tatiana quando penso nisso. Afinal, como eu, todo mundo tá aí também, se matando, sofrendo pra ter um bom emprego um dia, um salário decente, e essas coisas que as pessoas precisam ter. Mas ela não, ela só fica por aí, andando com aquela maldita toca de lã verde na cabeça. Ela nunca tira aquela toca, nem no verão. Juro que ela deve dormir com aquela toca na cabeça. Aí no Domingo a gente se encontrou e foi se sentar num banco com o encosto quebrado e os pés enferrujados que tinha lá perto do ginásio. A gente costumava ir lá nos tempos de colégio pra conversar e ficar olhando um pra cara do outro pra ver quem piscava primeiro. Isso foi antes dela enlouquecer, e começar a andar pra lá e pra cá, frenética, com aquele caderno onde ela escrevia ou desenhava sei lá o que o tempo todo. Uma vez o caderno dela caiu aberto no chão, e antes que ela percebesse e o pegasse de volta, pude ler uma frase mais ou menos assim:  "O jardineiro usa a merda dos porcos pra cuidar das margaridas". Aquilo me aborreceu, porque não é o tipo de coisa que você espera que uma garota escreva. Pensei que só devia ter lixo desse tipo escrito ali. Enfim, sentamos pra conversar. O que era impossível, porque ela nunca fala, não se expressa. É o tipo de pessoa que se estiver numa sala cheia de pessoas, acaba fazendo parte da mobília. Fiz milhares de perguntas e ela continuou no seu estado de autismo opcional. Quando me calei ela começou a falar, foi a última vez que ouvi a voz dela. "Sabe Paulo, lembro de um dia que a gente estava aqui, vendo o tempo passar junto com as nuvens, como a gente costumava fazer. Você lembra disso certo? Então, estávamos aqui, eu e você, então você me falou que queria ser astronauta, o que achei uma idéia fantástica, astronauta... Você lembra disso, Paulo?" Fiz que sim com a cabeça, não suporto quando ela começa a falar essas coisas. "Então, aí no outro dia na escola, eu escrevi no meu caderno novo 'Paulo quer ser astronauta', aí na linha de baixo 'Tati quer ser _____' Fiz assim, uma linha embaixo, porque não sabia o que queria ser. Pensei 'Ah, logo eu escrevo alguma coisa', mas nunca escrevi nada lá na porcaria da linha. E foi a melhor coisa que eu fiz. Sabe Paulo, um dia, não me lembro bem quando e nem como, aconteceu de eu chegar à alguns lugares sombrios na minha cabeça. Você me entende? Aqueles lugares onde as velas não param acesas que as pessoas não costumam visitar, eu imagino. Parece triste e medonho, se você pensa na solidão e na escuridão como algo ruim. Mas eu acho confortável me ver dentro de mim mesma. Descobri coisas inacreditáveis Paulo! Você nem imagina, mas agora não vou ter tempo pra dizer tudo do modo como essas coisas precisam ser ditas pra que se valha a pena acreditar nelas." Não dá pra acreditar na empolgação com que ela fala sobre essas idéias abstratas, que não servem pra nada. Então ela me abraçou, do nada. "E você Paulo? Virou astronauta?" Fiz que não com a cabeça. "Tudo bem, não importa." Disse ela, num tom doce. Aí eu perguntei: "E você? Quando vai preencher a 'porcaria' da linha?". Aí ela sorriu, mostrando os dentes e me olhou daquele mesmo jeito de quando nos encarávamos pra ver quem piscava primeiro, e disse: "Não preciso mais preencher, achei um outro jeito, uma brecha." Aí ela se levantou e foi embora, com a droga da toca verde na cabeça, mãos nos bolsos e andar frenético, virou a esquina e sumiu. Ninguém sequer lembra dela, acho que só eu, juro por Deus. E eu tô contando isso porque a minha cabeça tá sempre ocupada com os meus malditos horários, e a faculdade, e as prestações e tudo, que uma hora ou outra a gente acaba esquecendo dessas histórias.