A sugestão

À um olho vivo, sem crivo, não há detalhe que não sugira isso ou aquilo.

Lembra-te daquela mudança de hamornia naquela música, que arrepia-te a espinha? Lembra-te do trecho daquele romance que te faz querer chorar, mas quando você o cita, ninguém chora? Lembra-te daquele movimento de mãos da bailarina que ninguém percebeu, mas você não consegue esquecer? Isto tudo é a arte sugerindo.

Dominó


Todos naquele lugar eram velhos e tristes. Ninguém tinha o menor jeito para a conversa. Pareciam ocos. Pareciam ter uma mente frouxa; anoréxica. Trocavam entre eles uma ou outra palavra, sempre muito baixinho, muito impacientes e irritáveis. Talvez por serem velhos, pensei.

Uma senhora se levantou e foi até o balcão, na sala de convivência. Pegou uma caixa de dominó e jogou as peças sobre o balcão. Começou a montar as peças, como se estivesse jogando consigo mesma. Me aproximei dela e perguntei se ninguém mais ali jogava dominó.

- É claro que jogam. São todos velhos, não está vendo? - Ela disse.

Pedi, então, porque ela estava jogando sozinha.

- Não estou jogando, filho. Estou apenas aqui... Mexendo.

Perguntei se ela gostaria de jogar uma partida comigo.

- Eu? Eu não... Você quer jogar?

Disse que sim, mas na verdade não queria. Só estava tentando interagir, e ela parecia estar querendo jogar com alguém.

- Vocês sempre querem. - Disse-me.
- Nós... Quem?
- Vocês. Vem sempre aqui, ou trazidos por uma escola, ou em algum feriado, ou algo assim. Vem ver os velhos. Interagir com os velhos. Ver como é que vivem os velhos. Jogar dominó, ora essa. Vou te dizer uma coisa, filho, isso aqui não é um zoológico.
- Eu entendo... - Disse, sem  saber o que dizer.
- É claro que entende. Vocês vem aqui para que, afinal? Senão para "entender" o que se passa por aqui. Todos que entram aqui querem entender alguma coisa e jogar dominó. Mas eu acho que nenhum de vocês joga dominó fora daqui, não é mesmo? Por quê jogariam? Eu não jogaria.

Perguntei, então, à ela, o que ela faria se estivesse fora dali. Ela fitou as peças por um longo instante, e me disse:

- Não sei, filho. Essa é uma boa pergunta. Acho que faria caminhadas pela manhã, iria a feira... Coisas desse tipo. Mas de que adianta pensar nisso. Eu vou morrer é por aqui mesmo.
- Mas e se um filho seu vir lhe buscar?
- Meu filho já se foi.
- Netos?
- Netos? Nunca vi meus netos. Se entrassem por aquela porta como saberia se são meus netos ou se são qualquer um?
- É uma pena! - Disse à ela.
- Tudo por aqui é uma pena, meu filho.

Um velho resmungou alguma coisa n'outro canto, e aquele asilo ia ficando cada vez mais triste e cheio de mofo no forro.

O doce cheiro de gás lacrimogêneo



Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.
- Bertolt Brecht

Talvez simplesmente não estejamos prontos para assimiliar o que está ocorrendo no Brasil nos últimos dias. Quem sabe pelo fato de estarmos alienados, acomodados, ou como diziam alguns manifestantes "deitados eternamente em berço esplêndido", ou como disse a minha mãe "acostumados a abaixar cabeça". Talvez não tenhamos compreendido a força que a comunicação tem nos dias de hoje. Nunca foi tão fácil mobilizar o mundo inteiro sem sequer abrir a boca; sem se quer precisar de caneta ou papel. Talvez não compreendamos por inteiro toda a opressão que sofremos diariamente. Ou pior, talvez estejamos acostumados com a opressão, como o gado que pasta tranquilo esperando o abate. Talvez nossa necessidade de procurar mocinhos e vilões nos atrapalhe nesta busca por compreender quaís, de fato, são as origens da opressão. Seria Dilma Rousseff o maior agente opressor da sociedade? Fosse Serra o presidente tudo estaria bem? Não podemos ser ingênuos. O problema é muito maior do que qualquer fantoche escolhido, quase que aleatóriamente, a cada dois anos, pela ilusão de democracia nos oferecida pelo ato rídiculo do voto. Talvez um dos grandes problemas esteja agora sendo imperceptivelmente resolvido: O fim da omissão do tão famigerado povo.

Trecho adaptado do filme V de Vingança:
"Boa noite, brasileiros. Permitam que eu peça desculpas pela interrupção. Eu, como muitos de vocês, aprecio o conforto da rotina diária, a segurança familiar, a tranquilidade da repetição. Eu gosto delas como qualquer outro. Mas no espírito da comemoração, onde importantes eventos esportivos estão ocorrendo, ou prestes à ocorrer, eu pensei em marcar esta data, tomando um pouco do tempo de suas vidas diárias para sentar e conversar. Existem, é claro, aqueles que não querem que falemos. Desconfio que ordens estejam sendo dadas e homens com armas já se ponham a caminho. Por que? Porque enquanto a violência for usada no lugar do diálogo, palavras sempre terão seu poder. Palavras oferecem um meio pro significado e praqueles que escutam a enunciação da verdade. E a verdade é que existe uma situação totalmente errada neste país. Não existe? Crueldade e injustiça. Intolerância e opressão. Onde um dia houve o direito de discordar, de pensar e falar como se desejasse, agora temos sensores e sistemas de vigilância forçando-nos a nos conformar solicitando nossa submissão. De quem é a culpa? Com certeza existem aqueles que são mais responsáveis do que os outros e eles vão ter que prestar contas. Mas verdade seja dita, se procuram por culpados só precisam se olhar no espelho. Eu sei por que fizeram isso, eu sei que têm medo, quem não teria? Guerra, terror, doenças, havia uma miríade de problemas que conspiraram para corromper a razão de vocês e tirar de vocês o bom senso. O medo guiou suas ações e em seu pânico vocês confiaram no Palácio do Planalto. Eles lhes prometeram ordem; eles lhes promeram paz; e tudo o que eles exigiram em troca foi consentimento silencioso e obediente. Nestes últimos dias eu tentei romper este silêncio. Nestes últimos dias eu fui às ruas e protestei, para fazer este país lembrar de tudo o que ele se esqueceu. Há muitos anos estamos calados, e agora precisamos resgatar em nossas memórias a idéia de que igualdade, justiça e liberdade são mais do que palavras, são perspectivas. Se vocês não veem nada; se os crimes deste governo ainda lhe são desconhecidos; eu sugiro que deixem esta oportunidade única passar em branco. Mas se vocês veem o que eu vejo; se sentem o que eu sinto e se buscam o que eu busco, então peço que fiquem junto a mim, hoje, no lado de fora de suas casas, peço que dêem um passo além da sua zona de conforto, e juntos, daremos à eles um dia que nunca - nunca - esquecerão!"

Do mérito

Certa vez, Cícero, um jovem violonista, desconhecido do grande público, foi a uma exposição de fotos raras de Noel Rosa, na casa onde o músico passou os últimos anos de sua vida, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro.

Animado com a possibilidade de, talvez, encontrar alguém influente no meio musical, levou algumas fitas caseiras nas quais gravava suas composições instrumentais. Eram progressões de acordes de samba, gravadas em baixa qualidade, mas que mostravam seu talento razoavelmente saliente.

Eram sete dias de exposição aberta ao público. Grandes fotos estavam espalhadas pelos cômodos da casa. Haviam algumas pessoas vinculadas ao rádio e a gravadoras, mas todas elas achavam a abordagem do jovem músico um tanto quanto petulante.

Na sala, próximo a uma das poucas fotos em que Noel aparecia sorrindo, havia um grande gaveteiro de cedro, onde repousava uma vitrola. Cícero largou a pilha de fitas que trazia na mão - quando abordava os irritáveis magnatas das gravadoras - sobre o gaveteiro, com a intenção de guardá-las, todas, de volta na bolsa. Entretando, uma delas acabou por escorregar para detrás do gaveteiro. O rapaz deu uma olhadela com os cantos dos olhos, e percebeu que ninguém havia notado o infortúnio que acabara de lhe ocorrer. Ele não tinha a menor inteção de, em meio a uma exposição daquela, solicitar que alguém o ajudasse a arrastar um gaveteiro de cedro pela sala. Deu meia volta, olhou para Noel, que como já foi dito, ria, e saiu.

Dois dias após o encerramento da exposição, um jornal noticiava a seguinte manchete "Faxineira encontra suposta fita com gravações inéditas de Noel Rosa." Em menos de um mês a fita foi a leilão, sendo arrematada por uma boa fortuna.

O rapaz soube da notícia, foi ao leilão, e viu, calado, como o mérito não pode ser medido pelos olhos e ouvidos de outros homens. Viu que o julgamento e o juízo de valor são frágeis; insustentáveis. Lembrou de Noel Rosa rindo e riu com ele.

Cícero morreu anônimo e completo.
Facebook ou Como Queremos Ser Vistos

1. "Hoje o dia foi foda!"
2. "Escrevendo ensaio sobre a discrepância entre a epifania e o mosaico refratário da realidade."
3. "Eu e minha linda noiva em mais um jantar maravilhoso em um lugar super cool!"
4. "Eu e me cachorro Toby. Parceiro para todas as horas."
5. "Partiu Museu da História da Arte Abstrata."
6. "Odeio gente metida!"
7. "Lendo Foucault."
8. "Ontem a noite foi foda! Festa incrível, gente linda, muita bebida cara!"
9. "Interesses: Poesia, música erudita, sexo tântrico, viajar, conhecer pessoas interessantes."
10. "Liberte-se!"

Vida ou Quem Somos Mas Não Gostamos

1. "Hoje o dia foi exatamente igual a ontem, comum."
2. "Me masturbando na internet em posição pouco confortável na cadeira giratória."
3. "Eu e essa mina que eu traio às vezes gastando minha grana em um lugar super caro."
4. "Eu e o cachorro que odeio dar banho e levar pra passear. Minha mãe paga as vacinas e a ração."
5. "Partiu banheiro cagar."
6. "Adoro fuçar na vida dos outros e tenho tesão quando fuçam, curtem e compartilham a minha."
7. "Como escreve Fucô?
8. "Ontem a noite foi errada! Festa esquisita, gente estranha e a cerveja tava oito conto!
9. "Interesses: Faustão, futebol, masturbação, ficar em casa, ser interessante aos olhos alheios."
10. "Liberte-me!"