Sobre niilismo, sonhos e realidades

 

"Hoje em dia a noite acaba quando costumava acabar a manhã. A cidade acorda tarde; e a forma com que ela respira faz com que seus sussurros soem como a respiração de uma velha doente, com a garganta seca e grossa de poeira e fumaça. Pobres esquecidos; loucos marginais; é o que somos. Os fantasmas que nos sugam nunca darão as caras. O que te resta fazer? Essas merdas todas que te empurram goela abaixo? “Faça o que digo ou sua vida será miserável!” É o que te dizem, indiretamente, a vida inteira. Sua vida já é miserável; você é miserável. Tudo o que você faz, o tempo todo, serve só pra te entreter, e fazer você esquecer-se do rato vagabundo que é, e do quanto a vida é tediosa, e não vale nada."

Os sons da cidade acordaram alguém, em um desses prédios para os quais ninguém olha, nem mesmo quem mora neles. Era só mais uma dessas tardes quentes, nas quais ela acordava com a pele oleosa, e com a cabeça entupida de poesia e tristeza. Estava andando e caiu, do sonho pro seu corpo. Acontecia às vezes; era sugada pra realidade. Acordou zonza, com a boca seca; olhos embaçados. Seus pés procuraram as pantufas de todas as manhãs, mas só encontraram o chão frio; de mármore; coisa fina. Passou as mãos nos olhos e se viu em uma sala, provavelmente de um apartamento. Cortinas e paredes brancas; tudo muito limpo e organizado; salvo a mesinha de centro, em frente ao sofá que dormira. Uma garrafa de vodka, daquelas que só se ouve falar que é boa e cara, vazia; cigarros, uns fumados até o filtro, e outros pela metade, enchiam um dos três copos sobre a mesa; quem quer que morasse ali não fumava, pois não tinha cinzeiro; mas havia bebido com ela. Notou tudo isso em poucos segundos; tinha olhos atentos; como seus ouvidos, outrora acostumados a distinguir o timbre das violas e violinos.

Demorou até se dar por nua; seminua. No seu corpo só uma calcinha branca, de algodão. Tinha um corpo lindo; e era por isso que estava ali, sabia. Apressou-se a juntar suas roupas espalhadas pelos arredores do sofá, enquanto sua cabeça se fazia perguntas para as quais já se sabia as respostas. Vestiu a calça, mas, na pressa, não abotoou; Segurou os sapatos vermelhos com os dedos de uma mão, para não acordar quem quer que fosse a pessoa que ela não queria acordar. Com a outra mão segurava a blusa contra o peito; não conseguira achar o sutiã. Pegou seu isqueiro na mesa, o maço estava vazio, e andou, sorrateira, até a porta; trancada. Olhou por cima das mesetas de canto, e sob o bar; não encontrou chaves. Foi até uma das janelas, na intenção de sair por ali, mas acabou confirmando a idéia inicial de que era mesmo um apartamento; Ninguém mais mora em casas, afinal; Todos se empoleiram como podem; uns com mármore, outros com laje. Andou pela casa. Encontrou a porta do banheiro aberta; entrou. No espelho um rosto cansado; olheiras; a maquiagem dos olhos borrava a boca, e o batom borrava os olhos; fora, com certeza, uma transa tragicamente bela; não sabia se sentia pena por não lembrar, ou se sentia sorte. Largou os sapatos sob a tampa do vaso e limpou o rosto, na pia, com água e sabonete, desses com hidratante, que rejuvenescem e deixam a pele macia; ou havia outra mulher naquela casa, a que devia estar ali, diferente dela, ou o homem que a deixara bêbada no sofá era desses que usam base no rosto e nas unhas. Secou o rosto na toalha branca; não se incomodou em jogá-la no chão; estava de saída, afinal.

“Chaves, chaves, chaves...” Cochichava para si mesma enquanto andava pela casa. Foi atraída por um ronco, vindo do último quarto, no final do corredor; a porta estava aberta. Entrou porta à dentro e viu um homem um tanto quanto asqueroso; sola do pé com a pele seca, esfarelenta; pêlos nas costas; pouco cabelo na cabeça; babava feito um porco no lençol branco; nunca mais acordaria. “Sorte”, pensou ela. Pensou, também, várias coisas que poderia fazer com aquele ser escroto desmaiado à sua frente; mas deu meia-volta.

N’outro quarto, pode ver pela fresta da porta um edredom azul, com pequenos foguetinhos brancos com as asas e a ponta vermelhas. Alguns brinquedos caros amontoados perto de um tapete quadriculado. Sua mente ficou confusa. Não viu a criança. Não dava pra ver se a cama estava desarrumada ou não. Pensou que poderia ser o quarto de um filho que vinha visitar o pai divorciado uma vez por semana. Viu no trinco uma chave, e lembrou que era o que estava procurando; mas não aquela.

“Moça, dá licença?”, disse um sussurro infantil atrás dela. Ela ficou pálida e seus joelhos deram uma ou duas tremidas que a fizeram ficar embaraçada. Deu dois passos pro lado enquanto virava a cabeça para ver o menino. Uns sete anos, deduziu. Era bonito. Parecia com a mãe, deduziu. Ele entrou no quarto; tinha feito seu próprio café da manhã; algo numa cumbuca. Cereal com leite, deduziu. Olhou-a nos olhos, ficou mais bonito e fechou a porta.

Viu que ainda estava semi-nua. Sentiu, pela primeira vez naquele dia, vergonha. Vestiu a blusa e voltou até a sala. Sentou-se no sofá e pensou em algumas hipóteses. Podia interfonar para o porteiro e pedir que ele abrisse, mas isso faria alguma barulho, e seria um tanto quanto constrangedor e além do mais talvez nem houvesse um porteiro. Pensou em voltar ao quarto e procurar as chaves lá, mas não acreditou que faria tal coisa. Pensou também em pedir ao menino... Mas não.

No silêncio, quieta, escutou um som novo – que já estava lá, mas ela ainda não escutara – um “tic-tac” de relógio. Sua cabeça seguiu o som e seus olhos viram “13:57”. Então ela foi até o interfone.

“Alguém aí?” – Cochichava – “Alô? Tem alguém aí embaixo?”. E veio então a resposta.

– Oi!?

– Oi, é o porteiro?

– Não, é uma garota. E esse prédio não tem porteiro.

– Desculpe...

– Você pode abrir pra mim? Preciso ir no 705...

Ela abriu. Uma porta muito mais longe do que aquela a sua frente, e sem chaves. Achou isso um absurdo. Escorou-se na moldura da porta por alguns instantes, até que ouviu alguém do outro abrindo a porta com chaves. Fico ansiosa, e ficou pronta para correr como nunca assim que a porta se abrisse. Mas aí a porta se abriu. Uma mulher linda, trazia consigo sapatilhas na mão. Na porta o nº “705”. Ela olhou no fundo dos olhos dela, dos seus olhos, olhos que eram dela; era ela. Seu corpo, então, pesou e ela caiu, do sonho pro seu corpo. Seus pés procuraram as pantufas de todas as manhãs, e elas estavam lá. Sentiu, então, alívio. Sentiu, também, vontade de um pouco de cereal com leite.