Mãos

Mãos cheirando à tijolo.
Mãos pintadas;
ora cinzentas, ora alaranjadas.
Olhos que contam histórias.
Contam uma só história.
A mesma história;
não menos bela por isso.
Bela por ser dura e, mesmo assim,
continuar sendo bela.
Lágrimas; de olhos que ardem de cal.
Suor; da pele que arde no sol.
Mas tudo com gosto de mar.
De oceano; que jamais vira.
Águas que lhe escorriam na face
e misturavam-se ao pó
acimentando-lhe a cara.
As rugas negas, e as barbas brancas.
Em casa tinha a rede,
tinha água; sabao.
Tinha a mulher que lhe esperava.
Tinha uma sandália de couro.
Tinha pão e café.
Tinha um jornal.
E tinha alguns anos ainda
pra tirar com a pá do carrinho de mão
e atirar contra a parede
cada dia com menos força.
Sobre Mim

"Eu costumava me preocupar com as coisas do mundo exterior, mas eu não vejo mais a minha vida dessa perspectiva. Para mim, todas as necessidades estão dentro de mim mesmo, por isso realmente não importa o que está acontecendo no mundo. Nada mais importa. Você não precisa ter tudo perfeito, você não precisa ter um monte de dinheiro e nem um monte de mulheres. Se o seu trabalho na vida é criar, você pode encontrar dentro de você o que você precisa para fazer belas artes e músicas lindas. Mas você precisa se purificar espiritualmente e fisicamente. Você tem que se purificar constantemente das pessoas que vivem na cidade. Pode haver pessoas próximas a você que afetam você por dentro de tal modo que corrompem a sua capacidade de fazer aquilo que você faz. Mas se você tiver certeza de que as pessoas que estão próximas são boas pessoas, que estão lá por você, e dizem: ‘te amo’, você pode criar o seu templo em todo lugar que você ir. (...) A música não é algo que está sob o seu controle. Vem de algum outro lugar. Se você é intermediário entre o cosmos e o mundo real na Terra, que vem através da música, você é muito sortudo. Quando você grava uma música, não é seu trabalho tentar controlar tudo. É mais sobre estar no lugar certo e fluir com as energias que estão no ar ao seu redor e com as pessoas que estão fazendo música com você. A música não vem de você, você não é o responsável por ela, ela simplesmente segue sua trajetória usando você por intermédio. A coisa mais importante que você precisa entender é que você é o menos importante componente de todo o processo. A música será feita independente de qualquer artista estar aqui ou não. Se John Lennon ou Jimi Hendrix não tivessem existido, a música ainda teria ido adiante. Mudando, crescendo, e se tornando a coisa linda que é. Se você tira a música, tudo o que sobra são os indivíduos, e eles não significam nada. O indivíduo não é nada, é a música que está no ar o tempo todo que é importante, e você tem que ser humilde diante do que isso significa e representa.” (Frusciante, J.)
Os Passos

Vou no passo;
do passado faço rastro.
Vou descalço;
pra sentir o alívio da grama molhada,
e pra perder camadas quando sobre a brasa.

Foco o horizonte e...
É distante, é difuso, é difícil.
Foco o horizonte e...
É o mistério dos passos não dados.
É o segredo dos passos futuros,
por isso obscuros.
Passos não tão certos quanto os de agora;
passos duros. Não firmes. Duros.

E o que espero?
Pouco. Quase nada.
Mas o pouco que quero é tudo pra mim;
e meu tudo, é nada para o mundo.
Por isso às vezes me entristeço.
Por isso às vezes penso,
no silêncio que dura, às vezes, o dia inteiro,
que talvez esse mundo seja pequeno demais,
por não me deixar dar o que posso,
e por não me dar o pouco que peço.
Respire fundo
 
Estamos a sós ou somos um todo?
Há um lugar a cada passo que damos?
Ou o mundo todo é um só lugar?
Existe Amor, ódio, prazer, dor, culpa, saudade?
Ou é tudo um só estado de espírito?
A cada segundo que se passa entramos numa nova era?
Ou a eternidade é um só momento?
Porque estamos sempre presos entre os extremos?
O que acontece quando a frente fria encontra o mormaço?
Estaremos nós, sempre no centro da tempestade?
No olho do furação?
Há quem diga:
"Respire fundo, mudar é bom."
Há quem diga:
"Aguente firme, que o caos é o estopim para o progresso."
Eu concordo.
Mas não posso deixar de pensar:
Essa tormenta é também o que nos mata!
Não posso deixar de dizer:
Em meio ao caos constante dos dias, não há nada!
O instante

- Oi, cara.
- Oi.
- Você não estava no carro-barco? Um cara de chapéu me deu uma carona numa espécie de carro-barco. Você estava no banco de trás.
- Não vou dizer que você não sabe do que está falando... Mas eu não sei do que você está falando.
- Vocês me deixaram em um lugar específico que você sugeriu. Desci e acabei atropelado por um carro. Aí, eu acordei. Eu estava sonhando. Depois, descobri que ainda estava sonhando, sonhando que tinha acordado.
- Falsos despertares. Eu costumava tê-los sempre.
- Mas eu ainda estou nisso. Não consigo sair. Parece estar durando para sempre. Fico acordando dentro de outro sonho. Estou ficando assustado, andei até falando com gente morta. Uma mulher na TV me diz que a morte é uma espécie de tempo de sonho, que existe fora da vida. Estou começando a achar que estou morto.
- Deixe eu lhe contar um sonho que tive. Quando alguém diz isso, costuma significar alguns minutos de tédio. Mas o que se pode fazer? Li um ensaio de Philip K. Dick...
- No seu sonho?
- Não, eu o li antes do sonho. Era o preâmbulo. Era sobre aquele livro: Flow My Tears, the Policeman Said. Simplesmente fluiu. Ele sentiu como se o estivesse psicografando. Quatro anos depois, ele estava em uma festa. Ele conheceu uma mulher com o mesmo nome que a mulher do livro. Seu namorado tinha o mesmo nome que o namorado do livro. Ela havia tido um caso com um delegado de polícia. Ele tinha o mesmo nome que o delegado de seu livro. Tudo o que ela dizia parecia estar saindo de seu livro. Isso o deixa muito assustado, mas o que ele pode fazer? Pouco tempo depois, ele foi pôr uma carta no correio e viu um sujeito meio estranho em pé, ao lado de seu carro. Mas, ao invés de evitá-lo, ele disse: "Posso ajudá-lo?" O sujeito disse: "Fiquei sem gasolina". Ele lhe deu algum dinheiro, coisa que jamais teria feito. Ele chega em casa e pensa: "Ele não conseguirá chegar ao posto. Ele está sem gasolina." Então, ele volta, acha o sujeito e o leva ao posto de gasolina. Enquanto estaciona, ele pensa: "Isto também está no meu livro. Este mesmo posto. Este mesmo sujeito. Tudo." Bem, este ocorrido é um tanto assustador, certo? Ele resolve contar a um padre que escreveu um livro e que quatro anos depois, tudo isso aconteceu. E o padre diz: "Este é o Livro dos Atos". Ele diz: "Mas eu nunca o li". Então ele lê o Livro dos Atos e é estranhamente familiar. Até os nomes dos personagens são iguais aos da Bíblia. O Livro dos Atos se passa em 50 d.C. Então, Dick criou uma teoria segundo a qual o tempo é uma ilusão e estamos todos em 50 d.C. O que o levou a escrever o livro foi que ele, de algum modo atravessou esse véu do tempo. O que viu ali foi o que acontecera no Livro dos Atos. Ele se interessava pelo gnosticismo e pela idéia de que um demônio teria criado essa ilusão do tempo para nos fazer esquecer que Cristo retornaria e o reino de Deus adviria. Alguém está tentando nos fazer esquecer que Deus é iminente. Isso define o tempo e a História. Esta espécie de devaneio ou distração contínuos. Eu li isso e pensei: "Que estranho". E naquela noite, eu tive um sonho. Tinha um homem que, supostamente, era um vidente. Mas eu pensava: "Ele não é mesmo um vidente". Então, de repente, começo a flutuar, levitando até atingir o teto. Quase atravesso o telhado e digo: "Está bem, eu acredito em você". E flutuo de volta. Quando meus pés tocam o chão o vidente vira uma mulher usando um vestido verde, Lady Gregory. Lady Gregory era a patrona de Yeats, uma irlandesa. Mesmo nunca tendo visto a sua imagem eu tinha certeza de que esse era o rosto de Lady Gregory. Então, Lady Gregory vira-se para mim e diz: "Deixe-me explicar-lhe a natureza do universo. Philip Dick está certo quanto ao tempo, mas errado quanto a ser 50 d.C. Na verdade, só existe um instante, que é agora. E é a eternidade. É um instante no qual Deus está apresentando a seguinte pergunta: 'Você quer fundir-se com a eternidade, você quer estar no paraíso?' E estamos todos dizendo: 'Não, obrigado. Ainda não'." Logo, o tempo é apenas o constante "não" que dizemos ao convite de Deus. Isso é o tempo. Não estamos em 50 d.C., como não estamos em 2001. Só existe um instante. E é nele que estamos sempre. Então ela me disse que esta é a narrativa da vida de todo mundo. Por detrás da enorme diferença, há apenas uma única história, a de se ir do não ao sim. Toda a vida é: "Não, obrigado. Não, obrigado". E, em última instância é: "Sim, eu me rendo. Sim, eu aceito. Sim, eu me entrego". Essa é a jornada. Todos chegam ao sim no final, certo?
- Certo.
- Então, continuamos a andar e meu cachorro corre em minha direção. Fico tão feliz. Ele morreu anos atrás. Estou fazendo carinho nele e há um troço nojento saindo de seu estômago. Olho para Lady Gregory, e ela tosse. Ela diz: "Me desculpe". E vômito escorre por seu queixo. O cheiro é horrível. E eu penso: "Isto não é só cheiro de vômito. É cheiro de vômito de gente morta". Então é duplamente horripilante. Percebo que estou no mundo dos mortos.Todos a minha volta estão mortos. Meu cachorro morrera há 10 anos, Lady Gregory há muito mais tempo. Quando acordei, pensei: "Aquilo não foi um sonho. Foi uma visita àquele lugar, o mundo dos mortos." E como conseguiu finalmente sair de lá? Foi como uma daquelas experiências que transformam a vida. Eu nunca mais voltei a ver o mundo do mesmo jeito.
- Mas como é que você finalmente saiu do sonho? É esse o meu problema. Eu estou aprisionado. Fico achando que estou acordando, mas ainda estou em um sonho. Quero acordar de verdade. Como se acorda de verdade?
- Não sei. Não sou mais tão bom nisso. Mas se é o que está pensando, você deve fazê-lo, se puder. Porque, um dia, não será capaz. Mas é fácil. Sabe, simplesmente acorde.

Fonte: Waking Life (2001)