Fluxo de consciência

Brooklyn, 11 de setembro de 2001

Há uma grande parte de nós - tanto uma parte de cada um de nós, como uma parcela de todos nós - que tende à normalidade. Ou seja, busca pela segurança que parece residir em cada ato e pensamento que enquadre-se em nosso padrão mental de cotidianidade - tudo aquilo que é feito milhares de vezes durante a vida, mas não é tido como algo, de fato, memorável -  e não encontre-se fora do que se tem por socialmente aceitável. Isto se dá, em boa parte, graças às duas carecterísticas humanas mais universais: O medo e a preguiça. De fato, não se pode julgar um indivíduo que opte pela inércia frente à uma sociedade psicótica e paranóica como a nossa, afinal, é justo que se pense: "Tenho, sim, preguiça de sair de minha zona de conforto. Afinal, o que há para além dela, senão medo?".

Sim, há medo. Mas o medo não reside fora da nossa zona de conforto. O medo está impregnado na condição humana. É uma seiva, que nos fornece material para construção do nosso senso de individualidade, onde estamos separados do outro. O inferno são os outros. Mas seriam, de fato, os outros, o inferno? Ou o inferno estaria em cada um de nós, que enxergamos o outro como, de fato, outro - diferente de nós, distante de nós, pior ou melhor que nós-?

O que temos que nos perguntar é: Nossas características como o medo, a preguiça - ambas já citadas anteriormente - a violência, o egoísmo, a vaidade, a inveja e outras mais, vistas como defeitos, como distúrbios a serem corrigidos, seriam, de fato, defeitos? O ser humano é um ser divino, puro e perfeito, que foi corrompido pelo meio? Ou criou-se uma utopia sobre o ser humano ideal - disseminada no consciente coletivo da humanidade - e acreditou-se nela a ponto de se buscar por ela?

É preciso ter cuidado ao se limar nossos defeitos. Afinal, como diz o aforismo, nunca se sabe qual dos nossos defeitos é o cerne que sustenta nosso templo.
Sólo una escena (5)

     O seu Pedro é comovente, o senhor não acha? Está sempre de mal com o mundo, com seus labores cotidianos. Como se o mundo estivesse aqui, somente à espera do anúncio da parteira: "É um menino!" Para começar a girar, fazer a chuva molhar o trigo, o padeiro sovar o pão e mamãe cortar fora as cascas para servir Pedrinho só de miolo de pão e manteiga. Sonhara, pois, alto demais este infeliz. O senhor não acha que seria de grande valia que um homem deste levasse uma surra? Conheço uns camaradas que poderiam lhe arrochar por quase nada; talvez até algumas garrafas de vinho lhes servissem. O quê? O senhor acha demais? Tudo bem, há pessoas com muita paciência nesta cidade, pelo que pude perceber desde que me instalei. Talvez seja pelo frio que faz aqui. No norte não há como haver paciência, amigo. Já se está todo suado sem nem se mexer, não custa nada uma duzia de coices em algum destes infelizes. Mas não quero que o amigo pense que sou um homem violento; apenas me incomodo com estes seres. Imagine o senhor que estando todos felizes e embriagados ontem na taberna, entra este senhor, senta-se ao meu lado e me questiona:
     - Meu senhor, diga-me, por quê a vida nos dá tantos desprazeres?
     Ora, diga-me o senhor se tenho, eu, cara de quem tem a resposta para uma pergunta impertinente como esta?
     - Desconheço o fato de que a vida nos dá ou nos tira alguma coisa.
     - Como pode pensar tal coisa? Bebeste além da conta, suponho.
     - Fique o senhor sabendo que bebi o suficiente para manter meu discernimento e ainda aumentar minha lucidez.
     - E como pode o álcool aumentar a lucidez?
     - Da mesma forma que uns bons sopapos podem aumentar a percepção de inconveniência.
     Dito isso ele se retirou, como eu esperava. Infeliz e covarde. Que belo exemplar de ser humano, o senhor não acha?
O impacto da idéia
          se amplia com a rima.
Essa frase que começa,
          importa só quando termina.
Ícaro

Olha só pr'aquele infeliz -
Ele nem notou,
mas pintaram-lhe o nariz -
Sustentando um padrão,
quase sempre à prestação.
Olhando, assim ,de longe
ele até parece feliz.

Me diz,
tá esperando abrir a porta
sem antes puxar a tramela?
Não é aeroporto não, Jão.
É coração.
Quer girar as engrenagens
sem pegar na manivela?
Sei lá, João.
Acho que não...

Onde é que isso vai dar?
Onde é que isso tudo,
que você não tem,
vai te levar?
A vida é valsa.
Breve,
simples,
e dançada à dois.

E dançada agora,
não depois.
Se na chuva,
que molhe.
Se no Sol,
que queime.
Mas que se dance.
Pois assim,
num relance,
a música se vai.
E o silêncio ...
Meus filhos estão começando a notar que eu sou um pouco diferente dos outros pais. "Por que você não tem um emprego normal como todo mundo?" Eles me perguntaram outro dia. Então eu contei uma estória a eles: Na floresta, existiam uma árvore torta e outra reta. Todos os dias, a árvore reta dizia para a árvore torta, "Olhe para mim... Sou alta, reta e linda. Olhe para você... É toda torta e curvada pro lado. Ninguém quer olhar para você." E elas cresceram naquela floresta, juntas. Então, um dia, os lenhadores vieram, viram a árvore torta e a árvore reta e disseram, "Vamos cortar as árvores retas e deixar o resto." Então os lenhadores derrubaram todas as árvores retas e transformaram-nas em lenha, palitos de dente e papel. E as árvores tortas continuaram lá, crescendo e ficando mais fortes e estranhas a cada dia.
― Tom Waits
Idade da Razão
(cantar mentalmente com voz de criança, em ritmo de festa).

Cá entre nós, o livro não agradou.
Fica estranho desde a cobra tagarela.
Não sei não. Tá difícil de engolir
essa estorinha de meia tigela.

Mas mamãe me obriga a ir todo domingo
na coreografia do senta-levanta.
A letra eu sei de cor; os passinhos também,
E no final eu ganho a figurinha!

Meu álbum já está quase completo,
com figuras divertidas de montão.
Tem um moço sem uma costela
e outro com pregos atravessando as mãos.

Papai me disse que é tudo bobagem,
que ele espera que um dia eu possa ver.
- E esse dia, papai, vai ser quando então?
- Quando você atingir a idade da razão! (tãn tãn!)

(Every Children Songs - Canções Infantis Vol. 1, 2012)
Pouco, Importa.

Pouco importa, já que
o mundo não vai a lugar algum.
E orbitaremos sempre o mesmo Sol
no mesmo céu, nem sempre azul.

E a vida vai mostrar ou não
que somos um só, afinal?
Que pra não ficarmos sentados,
dançamos todos com o banal.

A gente corre todo estabanado,
sem olhar pro lado,
vivendo a vida de um em um.
Fingindo não tropeçar,
pra quem sabe um dia chegar
àquele lugar, que é lugar nenhum.

Talvez a gente queira demais,
e sem saber que menos é mais,
nos perdemos entre as chaves;
entre tantas fechaduras.

Mas existe um'outra porta,
que dá lá onde o pouco, importa.
Onde as brisas são suaves,
e as pitangas são maduras.