Sólo una escena (4)

"Ele decidiu escrever tudo que lhe passasse pela cabeça então andou e se fez notar pelas calçadas, pelas calças que vestia e pelas passadas performáticas que suas pernas lentas traçavam ao andar. Se fazia notar, mas não deixava que notassem que seu "se deixar notar" era notório. Notável. Notou e anotou por onde andou que o perigo veste as mesmas grifes que o cuidado, e também que o cauteloso morreu atropelado, ali, não deste, do outro lado, do mesmo lado que morreu o apressado. Maravilha. Sentiu saudade do brilho do asfalto molhado enquanto via que hoje ao céu azul o dia pertencia, e que a grande estrela brilharia até que tudo cedesse ao breu, ao frio e aos arrepios virís, porém inofensiovos, que a noite traria. A noite. Longas para os casais enamorados que terão os milagrosos par de pés alheios, que mesmo gelados esquentarão aos seus, e terão à quem dizer "boa noite", e ouvir um boa noite também, ao pé do ouvido, de uma boca com aroma de alcool e uvas; de vinho enfim; para que tanta cena, afinal? Longas também para os gatos da madrugada, e para os homens que buscam das ruas, e sempre conseguem, à cada noite, aquilo que esperam dela, e aquilo que ela pode oferecer, o vazio. Teremos todos o consolo no fim. Teremos o sono, e o amanhã não tardará, muito menos se acanhará; virá mais firme e derradeiro do que qualquer um de nós pode ser. Deitou, e no silêncio que instaura-se, sempre, no fim, pensou e temeu que amanhã viesse um dia em que seu dia não terminaria, sua vida se consumiria, e ele descobriria que talvez não haja sentido em escrever palavras rimadas em sequencia nada para além dos sete palmos. Ou talvez descubra que seu espírito é eterno, e seu corpo era apenas um casulo. Talvez ele apenas sonhe e viva o dia de amanhã. Ou talvez tudo acabe como terminam as mais belas poesias, com a frieza do ponto final. Quem morrer verá."

"No íntimo de seus corações eles empoleiraram Jesus Cristo, na forma de juíz, na cadeira mais alta do Tribunal, e, sob essa imagem, agridem e, sobretudo julgam. Julgam em seu nome. Ele dizia docemente à pecadora: "Eu também irmã. Eu não te condeno!" O que, à eles, nada impede. Eles condenam, não absolvem ninguém. Em nome do Senhor, esta é a tua pena. Senhor? Ele não pedia tanto, meu amigo. Ele queria que o amassem, nada mais. É bem verdade que há pessoas, mesmo entre os cristãos, que o amam. Mas são muito poucas. Ele havia previsto isso, aliás, tinha senso de humor. Pedra... Como sabe, o covarde, Pedro, portanto, o renega: "Não conheço este homem... Não sei o que queres dizer..." e etc. Aí vêmos como realmente ele era magistral na arte de fazer jogos com palavras: "Sobre esta pedra edificarei minha Igreja." Não se podia levar mais longe a ironia, não acha?" (Albert Camus - A Queda)
"Acredite-me, as religiões enganam-se a partir do momento em que pregam a moral e fulminam os mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade. Conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Meu senhor, já ouviste sobre a cela de escarros, que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? Imagino que não. Pois Bem, é uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente seu rosto, no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima. E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião, antes de tudo, como uma grande empresa de lavanderia, o que, aliás, ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados. Escarremo-nos, pois, e pronto! Digamos sim ao desconforto! Julguemo-nos e sentenciemo-nos. Ah, meu caro, vou contar-lhe um grande segredo. Não espere pelo juízo Final. Ele se realiza todos os dias." (Albert Camus - A Queda)