"Acredite-me, as religiões enganam-se a partir do momento em que pregam a moral e fulminam os mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade. Conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Meu senhor, já ouviste sobre a cela de escarros, que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? Imagino que não. Pois Bem, é uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente seu rosto, no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima. E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião, antes de tudo, como uma grande empresa de lavanderia, o que, aliás, ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados. Escarremo-nos, pois, e pronto! Digamos sim ao desconforto! Julguemo-nos e sentenciemo-nos. Ah, meu caro, vou contar-lhe um grande segredo. Não espere pelo juízo Final. Ele se realiza todos os dias." (Albert Camus - A Queda)