O instante

- Oi, cara.
- Oi.
- Você não estava no carro-barco? Um cara de chapéu me deu uma carona numa espécie de carro-barco. Você estava no banco de trás.
- Não vou dizer que você não sabe do que está falando... Mas eu não sei do que você está falando.
- Vocês me deixaram em um lugar específico que você sugeriu. Desci e acabei atropelado por um carro. Aí, eu acordei. Eu estava sonhando. Depois, descobri que ainda estava sonhando, sonhando que tinha acordado.
- Falsos despertares. Eu costumava tê-los sempre.
- Mas eu ainda estou nisso. Não consigo sair. Parece estar durando para sempre. Fico acordando dentro de outro sonho. Estou ficando assustado, andei até falando com gente morta. Uma mulher na TV me diz que a morte é uma espécie de tempo de sonho, que existe fora da vida. Estou começando a achar que estou morto.
- Deixe eu lhe contar um sonho que tive. Quando alguém diz isso, costuma significar alguns minutos de tédio. Mas o que se pode fazer? Li um ensaio de Philip K. Dick...
- No seu sonho?
- Não, eu o li antes do sonho. Era o preâmbulo. Era sobre aquele livro: Flow My Tears, the Policeman Said. Simplesmente fluiu. Ele sentiu como se o estivesse psicografando. Quatro anos depois, ele estava em uma festa. Ele conheceu uma mulher com o mesmo nome que a mulher do livro. Seu namorado tinha o mesmo nome que o namorado do livro. Ela havia tido um caso com um delegado de polícia. Ele tinha o mesmo nome que o delegado de seu livro. Tudo o que ela dizia parecia estar saindo de seu livro. Isso o deixa muito assustado, mas o que ele pode fazer? Pouco tempo depois, ele foi pôr uma carta no correio e viu um sujeito meio estranho em pé, ao lado de seu carro. Mas, ao invés de evitá-lo, ele disse: "Posso ajudá-lo?" O sujeito disse: "Fiquei sem gasolina". Ele lhe deu algum dinheiro, coisa que jamais teria feito. Ele chega em casa e pensa: "Ele não conseguirá chegar ao posto. Ele está sem gasolina." Então, ele volta, acha o sujeito e o leva ao posto de gasolina. Enquanto estaciona, ele pensa: "Isto também está no meu livro. Este mesmo posto. Este mesmo sujeito. Tudo." Bem, este ocorrido é um tanto assustador, certo? Ele resolve contar a um padre que escreveu um livro e que quatro anos depois, tudo isso aconteceu. E o padre diz: "Este é o Livro dos Atos". Ele diz: "Mas eu nunca o li". Então ele lê o Livro dos Atos e é estranhamente familiar. Até os nomes dos personagens são iguais aos da Bíblia. O Livro dos Atos se passa em 50 d.C. Então, Dick criou uma teoria segundo a qual o tempo é uma ilusão e estamos todos em 50 d.C. O que o levou a escrever o livro foi que ele, de algum modo atravessou esse véu do tempo. O que viu ali foi o que acontecera no Livro dos Atos. Ele se interessava pelo gnosticismo e pela idéia de que um demônio teria criado essa ilusão do tempo para nos fazer esquecer que Cristo retornaria e o reino de Deus adviria. Alguém está tentando nos fazer esquecer que Deus é iminente. Isso define o tempo e a História. Esta espécie de devaneio ou distração contínuos. Eu li isso e pensei: "Que estranho". E naquela noite, eu tive um sonho. Tinha um homem que, supostamente, era um vidente. Mas eu pensava: "Ele não é mesmo um vidente". Então, de repente, começo a flutuar, levitando até atingir o teto. Quase atravesso o telhado e digo: "Está bem, eu acredito em você". E flutuo de volta. Quando meus pés tocam o chão o vidente vira uma mulher usando um vestido verde, Lady Gregory. Lady Gregory era a patrona de Yeats, uma irlandesa. Mesmo nunca tendo visto a sua imagem eu tinha certeza de que esse era o rosto de Lady Gregory. Então, Lady Gregory vira-se para mim e diz: "Deixe-me explicar-lhe a natureza do universo. Philip Dick está certo quanto ao tempo, mas errado quanto a ser 50 d.C. Na verdade, só existe um instante, que é agora. E é a eternidade. É um instante no qual Deus está apresentando a seguinte pergunta: 'Você quer fundir-se com a eternidade, você quer estar no paraíso?' E estamos todos dizendo: 'Não, obrigado. Ainda não'." Logo, o tempo é apenas o constante "não" que dizemos ao convite de Deus. Isso é o tempo. Não estamos em 50 d.C., como não estamos em 2001. Só existe um instante. E é nele que estamos sempre. Então ela me disse que esta é a narrativa da vida de todo mundo. Por detrás da enorme diferença, há apenas uma única história, a de se ir do não ao sim. Toda a vida é: "Não, obrigado. Não, obrigado". E, em última instância é: "Sim, eu me rendo. Sim, eu aceito. Sim, eu me entrego". Essa é a jornada. Todos chegam ao sim no final, certo?
- Certo.
- Então, continuamos a andar e meu cachorro corre em minha direção. Fico tão feliz. Ele morreu anos atrás. Estou fazendo carinho nele e há um troço nojento saindo de seu estômago. Olho para Lady Gregory, e ela tosse. Ela diz: "Me desculpe". E vômito escorre por seu queixo. O cheiro é horrível. E eu penso: "Isto não é só cheiro de vômito. É cheiro de vômito de gente morta". Então é duplamente horripilante. Percebo que estou no mundo dos mortos.Todos a minha volta estão mortos. Meu cachorro morrera há 10 anos, Lady Gregory há muito mais tempo. Quando acordei, pensei: "Aquilo não foi um sonho. Foi uma visita àquele lugar, o mundo dos mortos." E como conseguiu finalmente sair de lá? Foi como uma daquelas experiências que transformam a vida. Eu nunca mais voltei a ver o mundo do mesmo jeito.
- Mas como é que você finalmente saiu do sonho? É esse o meu problema. Eu estou aprisionado. Fico achando que estou acordando, mas ainda estou em um sonho. Quero acordar de verdade. Como se acorda de verdade?
- Não sei. Não sou mais tão bom nisso. Mas se é o que está pensando, você deve fazê-lo, se puder. Porque, um dia, não será capaz. Mas é fácil. Sabe, simplesmente acorde.

Fonte: Waking Life (2001)