Tatiana podia ter mudado, e parado com aquela idéia de andar pela cidade preocupada apenas em andar e andar, pra lá e pra cá com as mãos nos bolsos, como fazia. Eu me preocupava, ora. Afinal, ninguém pode, simplesmente, sair por aí andando sem rumo pela vida toda. Poxa! Eu acordo todo bendito dia às sete horas da manhã e trabalho o dia todo. Sim, porque tenho a prestação do carro, do celular e do óculos que comprei mês passado pra pagar. À noite tenho que ir pra droga da faculdade. É, não quero ganhar essa merréca a vida toda, até porquê já tô querendo trocar de carro, de novo.  Mal como, mal tenho tempo pra um banho decente, e dormir então! Não dá tempo de ter um sonho sequer. Uma vez a Tatiana me disse que os sonhos duram, em média, oito segundos e tudo mais, o que quer dizer que eu durmo menos de oito segundos por noite, porque eu não sonho, nunca! Juro. Mas enfim, essa é minha vida. E ela tem sido assim a um bom tempo, e vai ser assim por mais uns dois anos no mínimo, o que, de certa forma, me deprime, mas é claro que quando eu me formar tudo vai se ajeitar... Eu fico, realmente aborrecido com a Tatiana quando penso nisso. Afinal, como eu, todo mundo tá aí também, se matando, sofrendo pra ter um bom emprego um dia, um salário decente, e essas coisas que as pessoas precisam ter. Mas ela não, ela só fica por aí, andando com aquela maldita toca de lã verde na cabeça. Ela nunca tira aquela toca, nem no verão. Juro que ela deve dormir com aquela toca na cabeça. Aí no Domingo a gente se encontrou e foi se sentar num banco com o encosto quebrado e os pés enferrujados que tinha lá perto do ginásio. A gente costumava ir lá nos tempos de colégio pra conversar e ficar olhando um pra cara do outro pra ver quem piscava primeiro. Isso foi antes dela enlouquecer, e começar a andar pra lá e pra cá, frenética, com aquele caderno onde ela escrevia ou desenhava sei lá o que o tempo todo. Uma vez o caderno dela caiu aberto no chão, e antes que ela percebesse e o pegasse de volta, pude ler uma frase mais ou menos assim:  "O jardineiro usa a merda dos porcos pra cuidar das margaridas". Aquilo me aborreceu, porque não é o tipo de coisa que você espera que uma garota escreva. Pensei que só devia ter lixo desse tipo escrito ali. Enfim, sentamos pra conversar. O que era impossível, porque ela nunca fala, não se expressa. É o tipo de pessoa que se estiver numa sala cheia de pessoas, acaba fazendo parte da mobília. Fiz milhares de perguntas e ela continuou no seu estado de autismo opcional. Quando me calei ela começou a falar, foi a última vez que ouvi a voz dela. "Sabe Paulo, lembro de um dia que a gente estava aqui, vendo o tempo passar junto com as nuvens, como a gente costumava fazer. Você lembra disso certo? Então, estávamos aqui, eu e você, então você me falou que queria ser astronauta, o que achei uma idéia fantástica, astronauta... Você lembra disso, Paulo?" Fiz que sim com a cabeça, não suporto quando ela começa a falar essas coisas. "Então, aí no outro dia na escola, eu escrevi no meu caderno novo 'Paulo quer ser astronauta', aí na linha de baixo 'Tati quer ser _____' Fiz assim, uma linha embaixo, porque não sabia o que queria ser. Pensei 'Ah, logo eu escrevo alguma coisa', mas nunca escrevi nada lá na porcaria da linha. E foi a melhor coisa que eu fiz. Sabe Paulo, um dia, não me lembro bem quando e nem como, aconteceu de eu chegar à alguns lugares sombrios na minha cabeça. Você me entende? Aqueles lugares onde as velas não param acesas que as pessoas não costumam visitar, eu imagino. Parece triste e medonho, se você pensa na solidão e na escuridão como algo ruim. Mas eu acho confortável me ver dentro de mim mesma. Descobri coisas inacreditáveis Paulo! Você nem imagina, mas agora não vou ter tempo pra dizer tudo do modo como essas coisas precisam ser ditas pra que se valha a pena acreditar nelas." Não dá pra acreditar na empolgação com que ela fala sobre essas idéias abstratas, que não servem pra nada. Então ela me abraçou, do nada. "E você Paulo? Virou astronauta?" Fiz que não com a cabeça. "Tudo bem, não importa." Disse ela, num tom doce. Aí eu perguntei: "E você? Quando vai preencher a 'porcaria' da linha?". Aí ela sorriu, mostrando os dentes e me olhou daquele mesmo jeito de quando nos encarávamos pra ver quem piscava primeiro, e disse: "Não preciso mais preencher, achei um outro jeito, uma brecha." Aí ela se levantou e foi embora, com a droga da toca verde na cabeça, mãos nos bolsos e andar frenético, virou a esquina e sumiu. Ninguém sequer lembra dela, acho que só eu, juro por Deus. E eu tô contando isso porque a minha cabeça tá sempre ocupada com os meus malditos horários, e a faculdade, e as prestações e tudo, que uma hora ou outra a gente acaba esquecendo dessas histórias.