Certa vez, Cícero, um jovem violonista, desconhecido do grande público, foi a uma exposição de fotos raras de Noel Rosa, na casa onde o músico passou os últimos anos de sua vida, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro.
Animado com a possibilidade de, talvez, encontrar alguém influente no meio musical, levou algumas fitas caseiras nas quais gravava suas composições instrumentais. Eram progressões de acordes de samba, gravadas em baixa qualidade, mas que mostravam seu talento razoavelmente saliente.
Eram sete dias de exposição aberta ao público. Grandes fotos estavam espalhadas pelos cômodos da casa. Haviam algumas pessoas vinculadas ao rádio e a gravadoras, mas todas elas achavam a abordagem do jovem músico um tanto quanto petulante.
Na sala, próximo a uma das poucas fotos em que Noel aparecia sorrindo, havia um grande gaveteiro de cedro, onde repousava uma vitrola. Cícero largou a pilha de fitas que trazia na mão - quando abordava os irritáveis magnatas das gravadoras - sobre o gaveteiro, com a intenção de guardá-las, todas, de volta na bolsa. Entretando, uma delas acabou por escorregar para detrás do gaveteiro. O rapaz deu uma olhadela com os cantos dos olhos, e percebeu que ninguém havia notado o infortúnio que acabara de lhe ocorrer. Ele não tinha a menor inteção de, em meio a uma exposição daquela, solicitar que alguém o ajudasse a arrastar um gaveteiro de cedro pela sala. Deu meia volta, olhou para Noel, que como já foi dito, ria, e saiu.
Dois dias após o encerramento da exposição, um jornal noticiava a seguinte manchete "Faxineira encontra suposta fita com gravações inéditas de Noel Rosa." Em menos de um mês a fita foi a leilão, sendo arrematada por uma boa fortuna.
O rapaz soube da notícia, foi ao leilão, e viu, calado, como o mérito não pode ser medido pelos olhos e ouvidos de outros homens. Viu que o julgamento e o juízo de valor são frágeis; insustentáveis. Lembrou de Noel Rosa rindo e riu com ele.
Cícero morreu anônimo e completo.